PAIS EXEMPLARES


Quero um filho que seja desejado.
Por isso, já fizemos um aborto
Pra que o rebento não nascesse torto,
Já que queremos tudo programado.

O meu filho nasceu, já estou cansado,
Não sei se vai chegar mesmo a bom porto,
Que o nosso ensino está mais do que morto.
Entrego-o aos avós (caso arrumado).

Sempre que o vejo, trago-lhe brinquedos,
Brinco com ele, acho-lhe muita graça,
Sem, contudo, entender bem os seus medos.

Nem entendo hoje, com pais desta raça
(A vida, sabem, tem destes segredos),
Por que é que o rapaz se meteu na passa.


Ponte de Sor, 5/11/05


O ALUNO


Temos aulas até cair prò chão...
Bastantes disciplinas de fachada,
Outras onde ninguém aprende nada,
Mas que nos vão roubando a atenção.

Assim vai esta nossa educação,
Ninguém ainda sabe a tabuada,
O pessoal gosta é da coboiada,
E, aos profes, a gente não dá mão.

Mas, sem saber contar, ler e escrever
(Confesso que não sou lá muito afoito),
Aqui alguma coisa hei-de aprender.

Na minha sala, somos vinte e oito
E já aprendi hoje (estão a ver?)
Que “mandar uma queca” se diz coito.


Coimbra, 6/11/05


O SÔTORE


A minha vocação de professor
Levou-a a ministra da Educação
Que coa sua varinha de condão
Me transformou num simples monitor.

Hoje ocupo os meninos, sou doutor,
Finjo que lhes ensino uma lição,
Mesmo sem saberem dou-lhes razão,
Que o aprender aqui faz-se sem dor.

Compro um livro (só um) de cada vez,
Vivo num quarto, como meia dose,
Conto os dias até ao fim do mês.

Sou pobre e o que sei é por osmose.
O futuro não é certo: um talvez...
Por isso, ó ministra, não me goze!


Ponte de Sor, 12/10/05


DOMVS IVSTITIAE


Neste país de hipócritas e cunhas,
O Direito e a Lei são instrumentos
(como tão bem se vê p’los julgamentos)
Para os quais só os ricos têm unhas.

A Justiça não é o que supunhas.
Sem gente com vontade e com talento,
Vai morrendo por cada adiamento,
Quando morta não é p’las testemunhas.

Se tu não tens dinheiro ou conhecido
Na t’levisão, na rádio ou na imprensa,
Podes ter a certeza: estás fodido!

Aqui não esperes mais do que indif’rença.
Deves mesmo ficar agradecido
Se não morreres antes da sentença.


Ponte de Sor, 28/10/05


O ADVOGADO


Não há nada pior para advogado
Do que um cliente cheio de razão,
Porque, mesmo que ganhe a sua acção,
Vai sempre dizer: «Fui injustiçado!».

Os despachos e todo o processado
São feitos prò ladrão ou aldrabão,
Que ficam sempre bem, ganhem ou não
(Tanto mais se estiver desempregado).

Gente séria, honesta e que se preza
Foge dos tribunais de forma lesta,
Que esta nossa justiça sempre lesa.

E alega o defensor com tez funesta,
Fazendo ao meritíssimo esta reza:
«Que se faça justiça!» (Será desta?).


Ponte de Sor, 4/11/05


O SENHOR AGENTE


Que saudades do tempo abençoado
Em que havia respeito e honestidade!
Que saudades do tempo em que a idade
Era um posto e o ladrão bem-educado!

Hoje em dia um polícia está lixado
Se quiser exercer a autoridade.
E num mundo sem dó, nem piedade,
Eu quero lá saber se és assaltado.

Passo umas multas, desço a avenida,
Anoto as ocorrências e mais nada.
A isto se resume a minha vida.

Pois se não pode dar uma estalada,
Deve a polícia andar bem prevenida
Que o melhor é chegar sempre atrasada.


Ponte de Sor, 2/11/05


O DOUTOR


Sou médico no Centro de Saúde,
Passo receitas, vejo se está mal,
Se estiver, vai ter de ir prò hospital,
Porque eu até já fiz mais do que pude.

Lá vai o bom tempo da gente rude
Que de noite enfrentava o temporal...
Agora que me importa se é fatal?
E que ninguém já espere que isto mude...

É a economia de mercado
E a saúde está cara e vende bem
Ou já viram algum desempregado?

E esta vida assim sem olhar a quem
Sempre me vai deixar bem preparado
Pra vir a ser político também.


Ponte de Sor, 20/10/05