À família e aos amigos, peço perdão por usar o palavrão


«A vida é uma tragédia quando vista de perto,
mas uma comédia quando vista de longe.
»

CHARLIE CHAPLIN


«O riso é um castigo; o riso é uma filosofia.
Passa-se sete vezes uma gargalhada
em volta de uma instituição e a instituição alui-se.
»

EÇA DE QUEIRÓS, in As Farpas

PREFÁCIO


PREFÁCIO


Filho e neto da boa educação,
Quem me conhece bem fica admirado
E até eu me sinto envergonhado
Deste livro que agora tens na mão.

Mas tudo tem a sua explicação:
Gerado nas margens do rio Sado,
Herdei dum tal Bocage o tal bocado
De correr a canalha a palavrão.

E este tempo de vil gente, amoral,
É filho do doutor da mula ruça
Que nunca distinguiu o Bem do Mal.

Mas os versos assim dados na fuça
Não são para ninguém em especial,
Só pra quem enfiar a carapuça.


Ponte de Sor, 14/10/05


BOCAGE


Bocage, meu irmão, quão semelhante
Acho teu fado ao meu quando comparo
O mundo em que viveste, um tempo avaro
Onde a gente corrupta era abundante.

Como tu, vivo triste e emigrante
Numa terra onde nada me foi caro;
Como tu, vivo preso e sinto o faro
Dum destino infeliz e sempre errante.

Às musas do teu Sado, a minha prece
Pra que me dêem garra e inspiração,
Que sempre nos teus versos aparece,

E pra que a minha boa educação
Não me impeça de dar em quem merece
Ou me iniba de usar o palavrão.


Ponte de Sor, 29/10/05

AS ELITES

Guarda : É proibido mexer nas obras de arte!
Bocage : Eu sei, só que esta obra de arte é o meu chapéu de chuva.
MANIFESTO ANTI-DANTAS
a Antero de Quental e Almada Negreiros


Hoje os Dantas e os Feliciano
São de esquerda e, tal como antigamente,
Arrotam à mesa do Presidente,
Obesos de saber palaciano.

Mas, se o Zé quis o Nobel no seu ano,
Para além de inquisidor sem ser crente
E comunista (evidentemente),
Teve de converter-se ao castelhano.

São assim os nossos int’lectuais:
Solidários com os “faminto e nu”,
Sem nunca os olharem como iguais,

Tratam o primeiro-ministro por tu,
Frequentam a corte e os telejornais,
São gente de esquerda e levam no cu.


Viseu, 25/12/99

SURREALISTA

Em vão durante meses procurei
Entre o tão vasto espólio da poesia
Surrealista, texto que, num dia,
De mim se apoderasse como um rei.

Na incerta busca tudo vasculhei,
Livros de autores e de antologia,
E, enquanto lia, mais me convencia
Que não encontraria o que busquei.

Lembrava-me o gorila corpulento
Que, no zoo, punha em d’lírio a multidão
Atirando sobre esta o seu excremento.

Mas a obra que caía em sua mão,
Imoral, automática, insolente,
Não deixava de ser um cagalhão.


Ilha de Tavira, 2/9/05

O INTELECTUAL DE ESQUERDA

Gosta de vestir bem, roupas de marca,
De comer com requinte e do bom vinho,
De clamar seu amor ao pobrezinho,
Enquanto o vinho verde gela na arca.

Cultura de funil que tudo abarca
Em cabeça feliz de passarinho,
Procura impressionar o seu vizinho
Com os chavões da moda na comarca.

Adora Saramago (após Nobel),
Só as ideias parvas lhe são caras
E vomita na América o seu fel.

Chão fértil a manias e a taras,
Os seus ídolos são gente cruel:
Estalines, Bin Ladens e Guevaras.


Ilha do Sal, 31/12/05

DR.

Temos um país cheio de doutores:
Escolas, hospitais, supermercados,
Cafés, tribunais, moços de recados,
Estádios, bancos, lojas, vendedores...

É uma praga, vás tu onde fores.
E, no meio de tais licenciados
Que infestam o país por todo o lado,
Florescem curiosos e amadores.

Os cursos of’recem-se ao domicílio,
A prestações, sem grandes exigências,
Tudo muito legal e por bom preço.

E vivemos assim num falso idílio,
Feito de estupidez e de aparências,
Onde em cada doutor há um burgesso.


Lisboa, 23/10/05

BRONCOS E PRETOS

Sou branco mas não sou porco racista.
Amo os pretos, perdão, os africanos,
Amarelos, vermelhos e ciganos,
Nisto não há quem seja mais papista.

Se os tratas mal, eu ponho-te na lista,
Mesmo que algum te cause muitos danos,
Que o branco tem de pagar pelos anos
Da longa exploração capitalista.

Ontem adormeci bem revoltado
Por causa de um racista, mas prometo
Que irei ajustar contas c'o tarado.

E ao acordar, pensei logo no gueto,
Quando vi que o meu carro foi roubado:
Só pode ter sido o cabrão dum preto.


Ponte de Sor, 17/11/05

FAMÍLIA, EDUCAÇÃO, JUSTIÇA E SAÚDE

Zé Povinho : O meu processo está a correr neste tribunal.
Bocage : A correr????!!!!.... Só se for o teu porque os outros estão parados!!!
PAIS EXEMPLARES


Quero um filho que seja desejado.
Por isso, já fizemos um aborto
Pra que o rebento não nascesse torto,
Já que queremos tudo programado.

O meu filho nasceu, já estou cansado,
Não sei se vai chegar mesmo a bom porto,
Que o nosso ensino está mais do que morto.
Entrego-o aos avós (caso arrumado).

Sempre que o vejo, trago-lhe brinquedos,
Brinco com ele, acho-lhe muita graça,
Sem, contudo, entender bem os seus medos.

Nem entendo hoje, com pais desta raça
(A vida, sabem, tem destes segredos),
Por que é que o rapaz se meteu na passa.


Ponte de Sor, 5/11/05


O ALUNO


Temos aulas até cair prò chão...
Bastantes disciplinas de fachada,
Outras onde ninguém aprende nada,
Mas que nos vão roubando a atenção.

Assim vai esta nossa educação,
Ninguém ainda sabe a tabuada,
O pessoal gosta é da coboiada,
E, aos profes, a gente não dá mão.

Mas, sem saber contar, ler e escrever
(Confesso que não sou lá muito afoito),
Aqui alguma coisa hei-de aprender.

Na minha sala, somos vinte e oito
E já aprendi hoje (estão a ver?)
Que “mandar uma queca” se diz coito.


Coimbra, 6/11/05


O SÔTORE


A minha vocação de professor
Levou-a a ministra da Educação
Que coa sua varinha de condão
Me transformou num simples monitor.

Hoje ocupo os meninos, sou doutor,
Finjo que lhes ensino uma lição,
Mesmo sem saberem dou-lhes razão,
Que o aprender aqui faz-se sem dor.

Compro um livro (só um) de cada vez,
Vivo num quarto, como meia dose,
Conto os dias até ao fim do mês.

Sou pobre e o que sei é por osmose.
O futuro não é certo: um talvez...
Por isso, ó ministra, não me goze!


Ponte de Sor, 12/10/05


DOMVS IVSTITIAE


Neste país de hipócritas e cunhas,
O Direito e a Lei são instrumentos
(como tão bem se vê p’los julgamentos)
Para os quais só os ricos têm unhas.

A Justiça não é o que supunhas.
Sem gente com vontade e com talento,
Vai morrendo por cada adiamento,
Quando morta não é p’las testemunhas.

Se tu não tens dinheiro ou conhecido
Na t’levisão, na rádio ou na imprensa,
Podes ter a certeza: estás fodido!

Aqui não esperes mais do que indif’rença.
Deves mesmo ficar agradecido
Se não morreres antes da sentença.


Ponte de Sor, 28/10/05


O ADVOGADO


Não há nada pior para advogado
Do que um cliente cheio de razão,
Porque, mesmo que ganhe a sua acção,
Vai sempre dizer: «Fui injustiçado!».

Os despachos e todo o processado
São feitos prò ladrão ou aldrabão,
Que ficam sempre bem, ganhem ou não
(Tanto mais se estiver desempregado).

Gente séria, honesta e que se preza
Foge dos tribunais de forma lesta,
Que esta nossa justiça sempre lesa.

E alega o defensor com tez funesta,
Fazendo ao meritíssimo esta reza:
«Que se faça justiça!» (Será desta?).


Ponte de Sor, 4/11/05


O SENHOR AGENTE


Que saudades do tempo abençoado
Em que havia respeito e honestidade!
Que saudades do tempo em que a idade
Era um posto e o ladrão bem-educado!

Hoje em dia um polícia está lixado
Se quiser exercer a autoridade.
E num mundo sem dó, nem piedade,
Eu quero lá saber se és assaltado.

Passo umas multas, desço a avenida,
Anoto as ocorrências e mais nada.
A isto se resume a minha vida.

Pois se não pode dar uma estalada,
Deve a polícia andar bem prevenida
Que o melhor é chegar sempre atrasada.


Ponte de Sor, 2/11/05


O DOUTOR


Sou médico no Centro de Saúde,
Passo receitas, vejo se está mal,
Se estiver, vai ter de ir prò hospital,
Porque eu até já fiz mais do que pude.

Lá vai o bom tempo da gente rude
Que de noite enfrentava o temporal...
Agora que me importa se é fatal?
E que ninguém já espere que isto mude...

É a economia de mercado
E a saúde está cara e vende bem
Ou já viram algum desempregado?

E esta vida assim sem olhar a quem
Sempre me vai deixar bem preparado
Pra vir a ser político também.


Ponte de Sor, 20/10/05

FUNÇÃO PÚBLICA E SOCIEDADE CIVIL


Operários em trabalho de turno
O BUROCRATA


Sou funcionário sem hab’litações
Numa repartição aqui do Estado,
Vou até ao café, chego atrasado,
Dou cabo dum cigarro e dos pulmões.

São bem difíceis todas as questões
Para quem está, como eu, mal informado
E pergunto ao colega ali do lado
Que, por não saber, dá-me sugestões.

O público, se tem pressa, que aguente,
Vendo esta cara linda e enfadada
Com que eu atendo sempre toda a gente.

Do que eu gosto mesmo é da papelada
E de poder faltar sem estar doente...
Isto é, de trabalhar sem fazer nada.


Ponte de Sor, 3/11/05


O EMPREITEIRO,

OU MELHOR, EMPRESÁRIO DE CONSTRUÇÃO CIVIL


A trabalhar na construção civil
Fui vendo e apercebendo que o dinheiro
Morava na mansão do empreiteiro,
Sem estatuto, nem estudos, nem perfil.

Esta vida, no fundo, é um funil,
Onde só passa quem é bom olheiro,
Qualidade que não falta ao pedreiro
Que faz por dez e vende por dez mil.

O lucro não é todo para mim,
Que, para construir muitos andares,
Também se tem de dar algum pilim.

E damos de comer a muitos lares,
Que, pròs da vereação dizerem “sim”,
Não basta só com eles almoçares.


Ponte de Sor, 8/11/05


O PATRÃO


A vida foi a minha única escola,
Nas obras trabalhei, fiz uns biscates,
Aprendi a fazer uns disparates,
Cheguei a passar mal, a pedir esmola.

Hoje tenho uma empresa, não dou bola,
Sou um grande empresário com tomates,
Tenho carros, piscina e uns dislates
De subsídios tirados da cartola.

A minha vida vai de vento em popa,
Mas a empresa já só produz credores
E o destino vai ser a bancarrota.

Devo a todos (até trabalhadores)
E mesmo nos impostos já se poupa...
Eis o fim natural dos impostores.


Ponte de Sor, 3/11/05


O EMPREGADO


Não sou trabalhador mas empregado,
Que isso de trabalhar também faz mal,
Faz doer o costado, é anormal,
Transforma a nossa vida em triste fado.

Se o meu patrão não vê, fico parado,
Depois eu vou cagar, ler o jornal,
Um intervalo mais e coiso e tal,
E o dia de trabalho está passado.

A minha empresa está de pés prà cova:
Não vende, não produz e não factura.
Que merda de patrão! Que bela sova!

Só já peço trabalho com fartura,
Agora que o perdi. Que dura prova!...
(Com gente desta, o país não tem cura.)


Ponte de Sor, 4/11/05


O SINDICALISTA


Sou o teu delegado sindical,
Meus dias de trabalho são perfeitos,
Fingindo que defendo os teus direitos,
Vou gozando o descanso semanal.

Velhos tempos da luta laboral!…
Hoje, com o Governo estamos feitos,
Ele dá-nos benesses e proveitos
E o sindicato dá a paz social.

É sina de operário ser roubado
Pelos patrões, Governo e sindicato
Que há muito se passou para este lado.

O esquema é sempre o mesmo e sai barato:
Belos discursos, bom palavreado,
E o trabalhador cai que nem um pato.


Quarteira, 15/4/06


O DIRIGENTE


Eu sou um dirigente português
Dum emblema que vende jogadores,
Deve ao fisco e aos bons fornecedores
E joga futebol de quando em vez.

Se o treinador um bom trabalho fez,
Tens o mundo na mão, vás onde fores,
O pior são as queixas dos credores
Que me perseguem todo o santo mês.

Como sabes, dinheiro não tem cor
E, se for necessário pra vencer,
Sou capaz de pagar certo favor.

Mas mesmo que acabasse por perder,
Seria um presidente ganhador
Que eu sou sempre o primeiro a receber.


Ponte de Sor, 8/11/05


O OTÁRIO


Sou um contribuinte cumpridor,
Passo recibo, exijo uma factura,
Pago taxas, pago IVA com fartura,
Pra alimentar um Estado gastador.

Eu sou um verdadeiro benfeitor,
Mas, nas repartições, ninguém me atura,
Tribunais, hospitais estão em ruptura,
Tratam-me como um cão e por favor.

Para onde vai, então, o meu dinheiro?
Pra reformas, subsídios milionários,
Mariscadas, viagens ao estrangeiro.

Bem grandes são os tachos partidários
De que o Estado é o santo padroeiro.
No fim, quem paga a conta? Os otários.


Quarteira, 17/4/06

O QUARTO PODER


Bocage : Eu tenho cá um olho pràs notícias...
REPÓRTER X


O jornalista vive de emoções,
Sem se preocupar com desmentidos
Ou depoimentos falsos ou fingidos,
Tudo fazendo em prol das t’levisões.

Criador de boatos, de ilusões
(os artigos sensatos não são lidos),
Dou o que o povo quer: mortos, feridos,
Assaltos, corrupção, violações.

Gente séria, de bem, não tem saída,
Da política só gente corrupta
Interessa que seja promovida.

Pelo que é sórdido é a nossa luta,
Eis o objectivo desta nossa vida.
Enfim, somos uns bons filhos da puta.


Lisboa, 30/10/05


ANALISTAS


Os analistas sabem mesmo tudo:
Política, fado, arte, economia,
Justiça, futebol, gastronomia,
Educação, saúde e até judo.

De os ouvir e ler fico parvo e mudo
Com tamanha instrução, sabedoria,
Deixando-me intrigado todo o dia:
Onde terá tirado o seu canudo?

Mas reparei, aqui há um bocado,
Que um analista ilustre desta praça
Falhou num tema onde eu estava informado.

E pensei cá pra mim com certa graça:
Afinal o gajo é bem apanhado,
Só sabe tudo onde a ignorância grassa.


Lisboa, 16/10/05


O CLUBISTA


Trabalho num jornal, Record ou Bola
(Pouco importa), defendo a minha equipa
E, às outras, vou-lhes dando com a ripa,
Que eu escrevo sem despir a camisola.

O campeonato ganha-se na escola
Do baixo jornalismo que constipa
E o nosso futebol tresanda à tripa
Do parcial comentador da bola.

E se alguém estranha a capa da revista
Por lá vir o meu clube de eleição,
Respondo-lhe na hora, bem trocista:

Que mais importante é para a nação
Jogador do meu clube no dentista
Do que ser o adversário campeão.


Ponte de Sor, 29/11/005

A NOBRE ARTE, O CLERO, A NOBREZA E O POVO

Zé Povinho : Os políticos são todos uns mentirosos!!!!...
Bocage : Não são todos, tu é que só votas nesses...
O MILITANTE


Eu sou um militante inteligente
Sem, todavia, ser dos mais capazes,
Mas basta-me colar só uns cartazes
Pra garantir os tachos cá da gente.

O meu "tachinho" deu-me o presidente
E só não estou melhor por não ter bases,
Mas aqui pouco importa o que tu fazes,
Basta, nas eleições, dizer "presente!".

A minha vida assim de papo cheio
Às vezes traz-me grandes aflições
E dores de cabeça de permeio.

Imagine o leitor (suposições)
Se, por um mero acaso ou caso feio,
O meu partido perde as eleições.


Ponte de Sor, 4/11/05


O CHUCHALISTA


Não são carne, nem peixe, os chuchalistas,
São vírus parasita do sistema
Que tem no compadrio único lema
E se propaga célere nas listas.

São mestres do disfarce e vigaristas,
De todas as campanhas são o tema,
Poluem um partido, entram no esquema,
Conhecem do poder todas as pistas.

Exímio defensor do capital,
Tem um perfil e pose democrata
Quando prega o amor ao social.

Ó chuchalista fino e de gravata,
Pra pregares aos pobres a moral,
Precisas de ter mesmo muita lata!


Ponte de Sor, 11/10/05


O CACIQUE


Presidente da Câmara da terra,
Sou dono do destino desta gente,
Dou-lhes emprego, mostro-lhes o dente,
Sou o senhor feudal sempre na berra.

Ganhar é o mais fácil nesta guerra.
O voto é tão barato e felizmente
Para o comprar e ser-se presidente
Basta só o charme que o poder encerra.

Algumas aldrabices, esquemas baços,
Muito ajudam a estar sempre na moda
Que o poder também tem e cria laços.

Cartilha do poder? Eu sei-a toda:
Beijos, sorrisos, tachos e abraços.
Quanto ao resto, o povo que se foda!


Ponte de Sor, 7/10/05


O MINISTRO


Antes, tudo sabia e resolvia,
À mesa do café, na t’levisão,
Em sábios artigos de opinião
Em que ocupava parte do meu dia.

Mas tudo eu esqueci do que sabia
No dia em que o Primeiro da Nação
Acreditou na minha vocação
Pra resolver o mal que denuncia.

Pra meu mal, bloqueei completamente,
A minha inteligência ficou morta
E na cabeça já só entra o pente.

Talvez o meu destino fosse a horta...
Razão tem o meu povo infelizmente:
Eu sou estúpido que nem uma porta!


Ponte de Sor, 8/10/05


O ELEITO


Do varandim saúda a multidão
Que em baixo rejubila coa vitória.
Quantas mentiras! Quanta falsa história!
O preço pra vencer a eleição.

Povo infeliz não vota em quem é são
E o voto da vitória vem da escória.
Povo infeliz de tão fraca memória
De que o poder reflecte a podridão.

No poder, como é fácil esquecer
Tuas promessas cínicas de esquerda
Com que salvaste o coiro de perder.

Mas não estranhes, também, que quem não herda
O prometido te venha dizer:
Raios te partam, mentiroso de merda!


Quarteira, 5/10/05


ELEITOR


Governe bem, governe muito mal,
O meu voto tem sempre garantido,
Porque eu não meto os cornos ao partido
Que escolhi pra meu clube em Portugal.

Eleições são um jogo capital
Para quem tem o tacho prometido,
Mas é jogo, pra mim, ganho ou perdido
Que termina na noite eleitoral.

De política não percebo nada,
Nem quero perceber, obviamente,
Que esta cabeça já nasceu cansada.

E se quem foi eleito presidente
É ignorante e faz muita borrada,
A culpa não é minha certamente.


Ponte de Sor, 15/11/05


O ZÉ PAVÃO


Filho do Zé Povinho é Zé Pavão
Que hoje se pavoneia na avenida
Ao volante do carro ca querida
De que ‘inda não pagou a prestação.

O pai foçava e só o filho é calão,
Pois vendo o velho pai na sua lida
Mais ficou a gostar da boa vida,
Razão por que virou um mandrião.

Eis a foto do povo português:
Gente séria, honesta e de trabalho
Trocada pelos vícios do burguês.

São dívidas no banco e até no talho...
E quando ninguém paga ao fim do mês,
Apetece mandá-los prò caralho!


Ponte de Sor, 26/10/05


O BARÃO


Traficante é senhor de muitas manhas,
O “cacau” mesmo sujo tem bom cheiro
E eu até sou um gajo bem porreiro,
Financio partidos e campanhas.

São necessárias muitas artimanhas,
Correr riscos, gastar muito dinheiro,
Corromper, subornar o mundo inteiro...
(Nesta vida, as despesas são tamanhas!)

Pra garantir um lucro alto, elevado,
Qualquer das soluções: perseguição
Ao tráfico ou, então, livre mercado.

Mas, ó legislador, presta atenção
(O mercado tem isto bem explicado):
O consumo não pode dar prisão.


Lisboa, 5/3/06


O SENHOR PRIOR


Depois de tanto ouvir em confissão
Centenas e centenas de pessoas,
Ricas e pobres, más (ou quase) e boas,
Decidi não dar mais a absolvição.

Mortes, assaltos, fraudes, corrupção,
Bem sei, meu Deus, que Tu tudo perdoas,
Mas, contra o que Tu crês e apregoas,
Os crentes já só são por tradição.

Pensas que o baptizado e o casamento
De tantos portugueses mensalmente
Reflecte a devoção p’lo sacramento?

Era melhor cá vires brevemente,
Pra veres com os teus olhos (lamento!)
Que morreste na cruz inutilmente.


Abrantes, 12/11/05


EPÍLOGO

Bocage : Se vives em Portugal, não tenhas medo de vir para o Inferno... Não vais notar a diferença.
BOCAGE, MEU IRMÃO


Bocage, meu irmão, cheio de graça,
Espero que esta simples homenagem
Não desmereça a tua boa imagem
De alto herói da anedota e da chalaça.

Como sabes, na vida tudo passa,
Mas necessária é muita coragem
Para enfrentar de pé, na outra margem,
Esta gente mesquinha e não de raça.

Guarda-me dos que mordem p’la calada,
Gente cínica, vil, porte pequeno,
Sem cara pra levar uma estalada.

E guarda estes meus versos do veneno
De quem não sabe rir à gargalhada
Nem nunca disse nada de obsceno.


Ponte de Sor, 11/11/05