MANIFESTO ANTI-DANTAS
a Antero de Quental e Almada Negreiros


Hoje os Dantas e os Feliciano
São de esquerda e, tal como antigamente,
Arrotam à mesa do Presidente,
Obesos de saber palaciano.

Mas, se o Zé quis o Nobel no seu ano,
Para além de inquisidor sem ser crente
E comunista (evidentemente),
Teve de converter-se ao castelhano.

São assim os nossos int’lectuais:
Solidários com os “faminto e nu”,
Sem nunca os olharem como iguais,

Tratam o primeiro-ministro por tu,
Frequentam a corte e os telejornais,
São gente de esquerda e levam no cu.


Viseu, 25/12/99

SURREALISTA

Em vão durante meses procurei
Entre o tão vasto espólio da poesia
Surrealista, texto que, num dia,
De mim se apoderasse como um rei.

Na incerta busca tudo vasculhei,
Livros de autores e de antologia,
E, enquanto lia, mais me convencia
Que não encontraria o que busquei.

Lembrava-me o gorila corpulento
Que, no zoo, punha em d’lírio a multidão
Atirando sobre esta o seu excremento.

Mas a obra que caía em sua mão,
Imoral, automática, insolente,
Não deixava de ser um cagalhão.


Ilha de Tavira, 2/9/05

O INTELECTUAL DE ESQUERDA

Gosta de vestir bem, roupas de marca,
De comer com requinte e do bom vinho,
De clamar seu amor ao pobrezinho,
Enquanto o vinho verde gela na arca.

Cultura de funil que tudo abarca
Em cabeça feliz de passarinho,
Procura impressionar o seu vizinho
Com os chavões da moda na comarca.

Adora Saramago (após Nobel),
Só as ideias parvas lhe são caras
E vomita na América o seu fel.

Chão fértil a manias e a taras,
Os seus ídolos são gente cruel:
Estalines, Bin Ladens e Guevaras.


Ilha do Sal, 31/12/05

DR.

Temos um país cheio de doutores:
Escolas, hospitais, supermercados,
Cafés, tribunais, moços de recados,
Estádios, bancos, lojas, vendedores...

É uma praga, vás tu onde fores.
E, no meio de tais licenciados
Que infestam o país por todo o lado,
Florescem curiosos e amadores.

Os cursos of’recem-se ao domicílio,
A prestações, sem grandes exigências,
Tudo muito legal e por bom preço.

E vivemos assim num falso idílio,
Feito de estupidez e de aparências,
Onde em cada doutor há um burgesso.


Lisboa, 23/10/05

BRONCOS E PRETOS

Sou branco mas não sou porco racista.
Amo os pretos, perdão, os africanos,
Amarelos, vermelhos e ciganos,
Nisto não há quem seja mais papista.

Se os tratas mal, eu ponho-te na lista,
Mesmo que algum te cause muitos danos,
Que o branco tem de pagar pelos anos
Da longa exploração capitalista.

Ontem adormeci bem revoltado
Por causa de um racista, mas prometo
Que irei ajustar contas c'o tarado.

E ao acordar, pensei logo no gueto,
Quando vi que o meu carro foi roubado:
Só pode ter sido o cabrão dum preto.


Ponte de Sor, 17/11/05